20090331

Parte 2 da antiguididade

A Divina Comédia – Inferno - Canto I

Adaptação em prosa por Helder da Rocha

 

Quando eu me encontrava na metade do caminho de nossa vida, me vi perdido em uma selva escura, e a minha vida não mais seguia o caminho certo. Ah, como é difícil descrevê-la! Aquela selva era tão selvagem, cruel, amarga, que a sua simples lembrança me traz de volta o medo. Creio que nem mesmo a morte poderia ser tão terrível. Mas, para que eu possa falar do bem que dali resultou, terei antes que falar de outras coisas, que do bem, passam longe.

Eu não sei como fui parar naquele lugar sombrio. Sonolento como eu estava, devo ter cochilado e por isso me afastei da via verdadeira. Mas, ao chegar ao pé de um monte onde começava a selva que se estendia vale abaixo, olhei para cima e vi aquela ladeira coberta com os primeiros raios do sol. A cena trouxe luz à minha vida, afastou de vez o medo e me deu novas esperanças. Decidi então subir aquele monte. Olhei para trás uma última vez, para aquela selva que nunca deixara uma alma viva escapar, descansei um pouco, e depois, iniciei a escalada.

Eu havia dado poucos passos, quando, de repente, saltou à minha frente um ágil e alegre leopardo. Astuto, de pêlos manchados, de todas as formas ele impedia que eu seguisse adiante. Não adiantava desviar ou buscar outro caminho, pois no final, ele sempre estava lá, bloqueando a minha passagem. Várias vezes tentei vencê-lo. Várias vezes falhei.

O dia já raiava e o sol nascia com aquelas mesmas estrelas que acompanharam o mundo no seu primeiro dia. A luz e a claridade daquele dia especial renovaram minhas esperanças, e me fizeram acreditar que iria conseguir vencer aquela fera malhada.

Mas a minha esperança durou pouco e o medo retornou quando vi surgir, diante de mim, um leão. Ele parecia avançar na minha direção, com a cabeça erguida, tão faminto e raivoso que até o próprio ar parecia temê-lo. E depois veio uma loba, magra e cobiçosa, cuja visão tornou minha alma tão pesada, pelo medo que me possuiu, que não vi mais esperança alguma na escalada. A loba avançava, lentamente, e me fazia descer, me empurrando de volta para aquele lugar onde a luz do Sol não entra.

Quando eu já me encontrava na beira daquele vale escuro, meus olhos aos poucos perceberam um vulto que se aproximava, que apagado estivera, talvez por excessivo silêncio.

- Tenha piedade de mim - gritei ao vê-lo - quem quer que sejas, sombra ou homem vivo!

- Homem não mais - respondeu o vulto -, homem eu fui um dia. Nasci em Mântua, nos tempos de Júlio César e vivi em Roma no império de Augusto. Fui poeta e narrei a odisséia de Enéas, que fugiu de Tróia depois do incêndio. E tu, por que não sobes o precioso monte, princípio e causa de toda glória?

- Tu és Virgílio? - perguntei vergonhoso - Ora, tu és meu mestre e meu autor predileto! Foi contigo que aprendi o belo estilo poético que me deu louvor. Eu não subi o monte por causa dessa fera. Ela me faz tremer os pulsos. Ajuda-me, sábio famoso! Ajuda-me a enfrentá-la!

- A ti convém seguir outra viagem - respondeu o poeta, ao me ver lacrimejando - pois essa fera, essa loba, é a mais feroz e insaciável de todas. Ela só partirá quando finalmente vier o Lebreiro que para ela será a dura morte. Ele não se alimentará nem de dinheiro, nem de terras; só a sua sabedoria, amor e virtude poderão nutri-lo. Ele virá para salvar a tua Itália caída. Ele irá caçar essa fera em todas as cidades até encontrá-la, quando então a matará e a conduzirá de volta ao inferno, de onde a Inveja, primeiro a trouxe para este mundo.

Depois, me fez uma proposta:

- Eu acho melhor, para teu bem, que me sigas. Eu serei o teu guia. Te levarei para um lugar eterno onde verás condenados gritando, em vão, por uma segunda chance. Depois verás outros que sofrem contentes no fogo, pois têm esperança de um dia seguir ao encontro daquela gente abençoada. E depois, se quiseres subir ao céu, lá terás alma mais digna do que eu, pois o imperador daquele reino me nega a entrada, pois à sua lei eu fui rebelde.

- Poeta - respondi -, eu te imploro, em nome desse Deus que não conheceste, que me ajudes a fugir deste mal ou de outro pior. Eu te seguirei a esses lugares que descreveste. Que eu possa ver a porta de São Pedro e os tristes sofredores dos quais falaste!

Ele então moveu-se, e eu o acompanhei.

Divina Comédia? Assim era o desejo no mundo encantado:

"Amor é fogo que arde sem se ver;
  Ë ferida que dói e não se sente;
  Ë um contentamento descontente;
  Ë dor que desatina sem doer;
  Ë um não querer mais que bem querer;
  Ë um solitário andar por entre a gente;
  Ë nunca contentar-se de contente;
  Ë cuidar que se ganha em se perder;
  É querer estar preso por vontade;
  Ë servir a quem vence, o vencedor;
  É ter com quem nos mata lealdade.
  Mas como causar pode o seu favor
  Nos corações humanos amizade,
  Se tão contrário a si é o mesmo Amor?"
(Camoes)
(Quevedo)

Nel mezzo del cammin di nostra vita

mi ritrovai per una selva oscura

ché la diritta via era smarrita.

 

Ahi quanto a dir qual era è cosa dura

esta selva selvaggia e aspra e forte

che nel pensier rinova la paura!

 

Tant'è amara che poco è più morte;

ma per trattar del ben ch'i' vi trovai,

dirò de l'altre cose ch'i' v'ho scorte.

 

Io non so ben ridir com'i' v'intrai,

tant'era pien di sonno a quel punto

che la verace via abbandonai.

 

Ma poi ch'i' fui al piè d'un colle giunto,

là dove terminava quella valle

che m'avea di paura il cor compunto,

 

guardai in alto, e vidi le sue spalle

vestite già de' raggi del pianeta

che mena dritto altrui per ogne calle.

 

Allor fu la paura un poco queta

che nel lago del cor m'era durata

la notte ch'i' passai con tanta pieta.

 

E come quei che con lena affannata

uscito fuor del pelago a la riva

si volge a l'acqua perigliosa e guata,

 

così l'animo mio, ch'ancor fuggiva,

si volse a retro a rimirar lo passo

che non lasciò già mai persona viva.

 

Poi ch'èi posato un poco il corpo lasso,

ripresi via per la piaggia diserta,

sì che 'l piè fermo sempre era 'l più basso.

 

Ed ecco, quasi al cominciar de l'erta,

una lonza leggera e presta molto,

che di pel macolato era coverta;

 

e non mi si partia dinanzi al volto,

anzi 'mpediva tanto il mio cammino,

ch'i' fui per ritornar più volte vòlto.

 

Temp'era dal principio del mattino,

e 'l sol montava 'n sù con quelle stelle

ch'eran con lui quando l'amor divino

 

mosse di prima quelle cose belle;

sì ch'a bene sperar m'era cagione

di quella fiera a la gaetta pelle

 

l'ora del tempo e la dolce stagione;

ma non sì che paura non mi desse

la vista che m'apparve d'un leone.

 

Questi parea che contra me venisse

con la test'alta e con rabbiosa fame,

sì che parea che l'aere ne tremesse.

 

Ed una lupa, che di tutte brame

sembiava carca ne la sua magrezza,

e molte genti fé già viver grame,

 

questa mi porse tanto di gravezza

con la paura ch'uscia di sua vista,

ch'io perdei la speranza de l'altezza.

 

E qual è quei che volontieri acquista,

e giugne 'l tempo che perder lo face,

che 'n tutt'i suoi pensier piange e s'attrista;

 

tal mi fece la bestia sanza pace,

che, venendomi 'ncontro, a poco a poco

mi ripigneva là dove 'l sol tace.

 

Mentre ch'i' rovinava in basso loco,

dinanzi a li occhi mi si fu offerto

chi per lungo silenzio parea fioco.

 

Quando vidi costui nel gran diserto,

«Miserere di me», gridai a lui,

«qual che tu sii, od ombra od omo certo!».

 

Rispuosemi: «Non omo, omo già fui,

e li parenti miei furon lombardi,

mantoani per patria ambedui.

 

Nacqui sub Iulio, ancor che fosse tardi,

e vissi a Roma sotto 'l buono Augusto

nel tempo de li dèi falsi e bugiardi.

 

Poeta fui, e cantai di quel giusto

figliuol d'Anchise che venne di Troia,

poi che 'l superbo Ilión fu combusto.

 

Ma tu perché ritorni a tanta noia?

perché non sali il dilettoso monte

ch'è principio e cagion di tutta gioia?».

 

«Or se' tu quel Virgilio e quella fonte

che spandi di parlar sì largo fiume?»,

rispuos'io lui con vergognosa fronte.

 

«O de li altri poeti onore e lume

vagliami 'l lungo studio e 'l grande amore

che m'ha fatto cercar lo tuo volume.

 

Tu se' lo mio maestro e 'l mio autore;

tu se' solo colui da cu' io tolsi

lo bello stilo che m'ha fatto onore.

 

Vedi la bestia per cu' io mi volsi:

aiutami da lei, famoso saggio,

ch'ella mi fa tremar le vene e i polsi».

 

«A te convien tenere altro viaggio»,

rispuose poi che lagrimar mi vide,

«se vuo' campar d'esto loco selvaggio:

 

ché questa bestia, per la qual tu gride,

non lascia altrui passar per la sua via,

ma tanto lo 'mpedisce che l'uccide;

 

e ha natura sì malvagia e ria,

che mai non empie la bramosa voglia,

e dopo 'l pasto ha più fame che pria.

 

Molti son li animali a cui s'ammoglia,

e più saranno ancora, infin che 'l veltro

verrà, che la farà morir con doglia.

 

Questi non ciberà terra né peltro,

ma sapienza, amore e virtute,

e sua nazion sarà tra feltro e feltro.

 

Di quella umile Italia fia salute

per cui morì la vergine Cammilla,

Eurialo e Turno e Niso di ferute.

 

Questi la caccerà per ogne villa,

fin che l'avrà rimessa ne lo 'nferno,

là onde 'nvidia prima dipartilla.

 

Ond'io per lo tuo me' penso e discerno

che tu mi segui, e io sarò tua guida,

e trarrotti di qui per loco etterno,

 

ove udirai le disperate strida,

vedrai li antichi spiriti dolenti,

ch'a la seconda morte ciascun grida;

 

e vederai color che son contenti

nel foco, perché speran di venire

quando che sia a le beate genti.

 

A le quai poi se tu vorrai salire,

anima fia a ciò più di me degna:

con lei ti lascerò nel mio partire;

 

ché quello imperador che là sù regna,

perch'i' fu' ribellante a la sua legge,

non vuol che 'n sua città per me si vegna.

 

In tutte parti impera e quivi regge;

quivi è la sua città e l'alto seggio:

oh felice colui cu' ivi elegge!».

 

io a lui: «Poeta, io ti richeggio

per quello Dio che tu non conoscesti,

acciò ch'io fugga questo male e peggio,

 

che tu mi meni là dov'or dicesti,

sì ch'io veggia la porta di san Pietro

e color cui tu fai cotanto mesti».

 

Allor si mosse, e io li tenni dietro.